domingo, 2 de setembro de 2012

O ator



Estou dentro do carro há 20 minutos e ele não desce. Ligo e ele não atende. Ele sabe que estou aqui. Então aparece, colocando o cinto na calça. Vejo um pedaço da barriga. Ele entra no carro e aperta meu braço. Eu vejo um pedaço do calcanhar. Vejo um pedaço da nuca e ela está vermelha, coisa de quem se enxugou rápido porque ficou enrolando pra tomar banho. Ele não se importa comigo ou em me deixar esperando.


Tenho o impulso de enfiar minha cara inteira dentro da camisa dele pra cheirar o centro do seu peito. Onde mistura o cheiro do amaciante, dos pelos e do desodorante. Onde tem o perfume da testosterona dos deuses. Quando se está com um homem assim, eu lembro “meu Deus, como eu gosto disso”. Eu não gosto de trabalhar, eu não gosto de mais da metade de tudo que eu como, eu não gosto de ser paquerada, eu não gosto de festa de família, eu não gosto de acordar, eu não gosto de muito mais da metade das pessoas que cumprimento, eu não gosto das minhas roupas, eu não gosto de 80% dos papos que as pessoas querem começar comigo, eu não gosto do pessoal que me pergunta como faz para trabalhar não sei onde. Mas eu gosto disso, vivo pra isso, acordo pra isso, trabalho pra isso, tomo banho pra isso. Esse momento em que eu coloco minha cabeça numa gaveta e perco as chaves. E saio de casa apenas como um animal predador que pode matar para ter o que comer ao final.

O cabelo dele é muito cabelo. Ele tem uma covinha na expressão da boca. Não é onde as pessoas graciosas têm. É na expressão do sorriso. Ele parece desenhado por alguém minuciosamente grosseiro. Ele então começa seu festival de “me adores”. Ele é ator. Quer ser adorado. Ele tem mulheres mais bonitas e o que tenho de melhor, talvez meus comentários engraçados e sensíveis, ele nem tem muita capa- cidade mental para valorizar. Mas ele sabe que tenho algo diferente e que é legal ser adorado por uma garota que tem algo diferente. E eu o adoro.

Ele fala sobre o horário da madrugada em que acordamos com um frio no estômago. É um texto que recebeu e tem de decorar para uma peça. Não consegue explicar nada sobre o texto. Ele me pergunta por que almoçar é com “ç” e almocei não é com “ç”. E isso, dito por um deus grego, me parece um tratado profundo sobre a humanidade. Não importa, amor. Basta saber que seu gigantesco ombro ultrapassa os limites do banco do carona e vai o caminho inteiro roçando em mim. Ele se demora no cardápio. Ele adora as refeições semanais nas quais uma garota com olhos enormes pra cima dele presta atenção quase que religiosa a tanta baboseira. Ele conta em detalhes sobre a peça e a novela e o filme e as famosas todas que ligam pra ele o tempo todo e os produtores e esse papo que nunca quer dizer nada a não ser sobre ele próprio enquanto ator. Eu escuto…

Eu escuto música clássica. E torço para que o tormento acabe logo. Vamos logo para casa. Me conte tudo isso pelado, que tal? Eu juro que escuto tudo, dou minha opinião e de repente até te escrevo uma peça inteira na qual você, nu… Só penso nele pelado. Ele é uma linda moça chata e eu um macho encantado pelo filme mais lindo do cinema mudo. Enquanto ele tenta concluir frases, eu me pego pensando “se ele não quiser ir pra minha casa, não vou pagar a droga da conta. Se ele não quiser ir pra minha casa, eu vou entrar no carro e eu… eu vou ficar louca se ele não quiser ir pra minha casa”. A ereção da mulher é ainda mais forte porque não tem fim. É no buraco, no vazio. Sinto dor no saco. Ele pede o décimo café e quer falar mais e contar mais. E encosta em mim, gosta de sentar colado, e fala ao meu ouvido, e mexe no meu cabelo. Me adore, eu sou ator, me adore. Sim, querido, muito, muito.

Em casa, ele deita no sofá, sou sempre eu que tenho de começar tudo. Faço a massagem, o carinho, mordo, assopro, lambo e mais esse monte de coisas. Quase tenho saudade da entrega perfeccionista dos feios e dos pobres. Ele não se esforça, apenas pede, reclama, dorme, acorda, pede mais. Sim, querido. Deixe tudo comigo, apenas exista. Pessoas como você apenas precisam existir e nada mais, pessoas como você podem tudo, até escrever almocei com “ç”. Aliás, você tem razão, “almoçei” é a coisa mais linda que já vi na minha vida. Em cinco minutos vou querer te matar ou te expulsar da minha casa. Mas ainda temos mais cinco minutos.

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